domingo, fevereiro 05, 2006


Cantadores ambulantes, 1888 Posted by Picasa
Gravura de Manuel de Macedo (1846-1915), certamente delineada a partir de fotografia, cujo tema versa os cegos cantadores ambulantes da década de 1880. O conjunto é formado pelo cego tocador de rabeca, pelo cego e cantor tocador de viola de arame e pelo moço de pedir. A imagem publicada no "Álbum de Costumes Portugueses", Lisboa, David Corazzi, 1888, trazia um magnífico texto assinado pelo jornalista e homem de letras Júlio César Machado (1835-1890). Machado regista preciosas informações sobre as deambulações, comportamentos e repertórios dos multitudinários grupos de ceguinhos mendigos que calcorreavam o país com cantorias lamentosas. Machado não distingue poisos, citando circuitos urbanos e rurais, com paragem obrigatória na Nazaré. Os locais de exibição mais frequentes eram tabernas, feiras, arraiais, romarias e portas de senhoras respeitáveis que condoídas não fechavam os cordões às bolsas. A principal cantoria destes ceguinhos era o fado narrativo em décimas, cujos textos contavam os mais sanguinários dramas de faca e de alguidar.
Não se consegue perceber como é que esta espantosa crónica de Júlio César Machado escapou aos primeiros estudiosos do Fado, particularmente Ernesto Vieira, João Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel. Em 1888 o jornalista Júlio César Machado informa que o Fado é conhecido em praticamente todo o país rural e urbano, mais não seja devido às frequentes deambulações/actuações dos cegos cantadores. Nos anos seguintes, os três conceituados nomes da cultura portuguesa supra-citados centralizam a questão da emergência e prática do Fado em Lisboa. Concedem que também se pratica em Coimbra, na comunidade estudantil, para tanto urdindo a fantasiosa patranha da transmigração operada pelos estudantes. Isto dito e escrito com toda a seriedade, já depois de Alexandre Herculano ter desmistificado o "Milagre de Ourique" enquanto fábula das origens do Reino de Portugal. O enorme atraso da etmomusicologia portuguesa de então ajudará a perceber que fossem ignorados (ou silenciados?) os reais mecanismos de circulação/divulgação como prostitutas, soldados, seminaristas, cegos cantadores ambulantes, companhias ambulantes de teatro, tunas rurais e urbanas, casas de edição de partituras, regentes de filarmónicas, tunas, corais e orquestras, damas burguesas que tinham piano de sala, professores de música dos liceus e seminários, estudantes liceais, e naturalmente estudantes da UC. Outro poderoso argumento documental que nos ajuda a desmistificar a peta do estudante de Coimbra que levou o Fado de Lisboa para Coimbra é a monumental edição do "Cancioneiro de Muzicas Populares", publicado no Porto, na década de 1890, pelo professor de música e executante de Guitarra do Porto César das Neves (1841-1920). Quase todos os fados ali transladados também eram conhecidos noutras localidades que não apenas Lisboa, conforme assinalam em fim de página os colaboradores da recolha. Por exemplo, o "Fado Robles" (=Artilheiro) foi composto no Quartel Militar de Évora e popularizado no Porto, pois o seu autor residiu vários anos naquela cidade, tendo mesmo tomado parte activa na Revolta do 31 de Janeiro. O "Fado Serenata do Hylario", presente nesse cancioneiro, não foi recolhido em Coimbra mas sim em Penafiel. O "Fado Póstumo do Hylario" era cantado em Braga por um rapaz cego. E se o "cancioneiro de César das Neves" se vendia aos coleccionadores em fascículos, o que dizer de duas outras colecções que vieram a lume com escassos anos de distância, de enorme sucesso, concretamente as séries de fados da Sassetti ("Cantos populares. 36 fados", Lisboa) e da casa Eduardo da Fonseca ("Cantos populares", Porto)? Só a 1ª série da casa Eduardo da Fonseca, com 12 fados, ao preço de 500 reis, atingiu pelo menos a 7ª edição antes de 1904. E não se diga que após tanto trabalho a harmonizar para piano todas essas partituras, elas se venderiam a quem não sabia ler música!
E mais se não diz sobre caminhos que não são seguramente os nossos. Vale a pena espreitar nesta litografia a viola de arame, cuja configuração tanto nos pode conduzir a modelos mais antigos da Viola Chuleira (=Braguesa=Ramaldeira), com a construções baratas da Viola Toeira.
AMNunes

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